Experiência internacional confirma: o trabalho prisional reduz a reincidência criminal na sociedade


“O grau de civilidade de uma sociedade pode ser medido pela maneira como ela trata os seus prisioneiros” diz uma frase popular, frequentemente atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoiévski. Embora a origem da frase seja incerta, sua veracidade não: todo sistema prisional reflete de fato a consciência ética e moral da sociedade. Enquanto a Noruega e demais nações  escandinavas, investem paulatinamente na reintegração social do apenado pelo trabalho e educação, e recebem em retorno os menores índices de reincidência criminal do mundo; outros países, como os Estados Unidos, seguem na liderança entre as nações com as maiores taxas de encarceramento, reincidência e superlotação de unidades prisionais. Com isso, as questões que a Fundação Santa Cabrini  convida o leitor a fazer são: Qual exemplo queremos seguir no Brasil? Qual experiência internacional e que grau de civilidade iremos reproduzir em nosso sistema penitenciário? Com a terceira maior população prisional do mundo, e com indicadores alarmantes de reincidência, torna-se urgente que a sociedade brasileira reflita sobre a importância do trabalho e da qualificação na ressocialização. 

Noruega

Arquitetura internacionalmente premiada. Quartos individuais, equipados com televisão, frigobar, escrivaninha e banheiro privativo. Estúdio, biblioteca, centro esportivo e diversas áreas de lazer. Sem grades ou cercas elétricas, com direito a vista privilegiada dos bosques locais. O complexo de Halden, localizado no condado de Østfold, sudoeste da Noruega, é facilmente confundido com um hotel de luxo. Porém, é na verdade a prisão do país de segurança máxima, destinada aos detentos mais perigosos, como assassinos, estupradores e traficantes de drogas. “Se você só está trancado numa cela e sem oportunidades para crescer, é impossível se tornar um bom cidadão” afirma o jovem Jon Fredrik, interno de Halden e sentenciado a cumprir 15 anos de pena por assassinato. “Aqui não encontrei um castigo, mas sim uma chance para equilibrar minha mente, evoluir, aprender e me qualificar” alega Fredrik, que terminou o segundo grau e se formou em Design Gráfico durante sua estadia no presídio Halden, como relata em sua entrevista ao BBC 1

Complexo de Halden, Noruega. Fonte: Europris

No início da década de 90, quando o índice de reincidência criminal da Noruega  era aproximadamente de 70% (como é atualmente no Brasil), o Serviço Penitenciário Norueguês passou por uma série de reformas, que aboliram o viés punitivista das unidades carcerárias, e tornaram o sistema prisional  voltado para reinserção dos detentos através do trabalho e da qualificação profissional 2. Segundo dados do Institute for Criminal Policy Research, as mudanças resultaram em impactos expressivos: hoje, a Noruega ostenta a menor taxa de recidivismo no mundo, a saber, de apenas 20%, bem menor que a própria média europeia de 55% 3.  Além disso, tanto a Noruega quanto seus países circunvizinhos, como Suécia, Holanda e Dinamarca, apresentam as menores taxas de encarceramento no planeta (70, 66 e 72 presos por 100 mil habitantes respectivamente), como indica as informações da World Prison Brief, base de dados da International Centre for Prison Studies. 4

Em três décadas, a Noruega reformulou o seu sistema penitenciário, posicionando como objetivo basilar de sua doutrina penal a reinserção, o resgate do indivíduo encarcerado ao convívio social e ao exercício de cidadania, ao invés do mero isolamento prisional como punição e castigo. Para cumprir a sua pena, o apenado é obrigado a comprovar progressos educacionais, laborais e interpessoais, caso contrário, a pena é prorrogada por mais 5 anos, até que a sua reintegração social seja devidamente testificada 5. Como resultado dessa abordagem humanizada e ressocializadora, o país se tornou referência mundial de inclusão, segurança e políticas penitenciárias. 

Por outro lado, pode-se argumentar que é incoerente comparar o Brasil ao modelo de gestão prisional da Noruega e países escandinavos afins, que ocupam o topo do índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. Afinal, enquanto que menos de quatro e dez mil pessoas estão em cumprimento de pena na Noruega e Holanda respectivamente, o Brasil apresenta a quarta maior população prisional do mundo, com mais de 800 mil presos, como mostram os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Dessa forma, em um cenário de quase um milhão de apenados, torna-se inconcebível construir e sustentar uma unidade prisional como o complexo de Halden, designada a atender no máximo 252 pessoas. 

No entanto, embora a estrutura da prisão de Halden esteja distante da nossa realidade penitenciária atual, é possível, sim, espelhar-se nas práticas e ideais que nortearam os três últimos decênios da política penitenciária da Noruega, investindo na ocupação laborativa, acadêmica e qualificativa da população apenada do Brasil, como defende a Fundação Santa Cabrini há quase 45 anos. Além disso, os Estados Unidos, que possuem uma superlotação carcerária e um sistema penitenciário em geral mais similar ao brasileiro, também demonstram vários casos regionais da efetividade do trabalho e da qualificação profissional como instrumentos de ressocialização.  

Estados Unidos

Hoje, uma em cada quatro pessoas sob pena privativa de liberdade no mundo, encontra-se nos Estados Unidos. Com mais de dois milhões de encarcerados, os EUA têm a maior população penitenciária do planeta, além da segunda maior taxa global de aprisionamento (730 por 100 mil habitantes), como indica o último levantamento da World Prison Brief.  Nessa perspectiva, os Estados Unidos também apresentam uma taxa elevada de reincidência criminal, de 60%, ou seja, em cada dez pessoas que deixam os presídios norte-americanos, seis retornam à conduta ilícita 6.  

Diante desse cenário alarmante, vários estados norte-americanos passaram a adotar o trabalho prisional e a profissionalização como meios de reinserção social da população encarcerada, como nas unidades prisionais de Ohio e Minnesota, estados do centro-oeste dos EUA .  Um estudo conduzido por Makarios et al (2010), baseado em dois mil pessoas que cumpriram pena em presídios de Ohio, destacou a eficácia que o desenvolvimento acadêmico, profissional e laborativo desempenha na reintegração social de detentos. De acordo com os dados levantados, os indivíduos encarcerados que participaram de programas de qualificação e trabalho remunerado, tiveram melhores oportunidades de ingresso ao mercado de trabalho após o cumprimento de pena, e índices bem menores de reincidência à ilicitude em comparação aos detentos que não adentraram aos programas de formação profissional e empregabilidade 7

Detentos trabalhando numa plantação de batatas no Instituto Penal in Lancaster, Ohio, Agosto 4 2009. Fonte: Kiichiro Sato / Associated Press
Detentos trabalhando numa plantação de batatas no Instituto Penal in Lancaster, Ohio, Agosto 4 2009. Fonte: Kiichiro Sato / Associated Press

No estado de Minnesota, ações de profissionalização e trabalho com o público apenado ocorrem desde 1967 nos chamados “work release programs”, conduzidos pelo Minnesota Department of Corrections, em que os detentos se qualificam e trabalham ao longo do dia e retornam aos presídios à noite. Estudos recentes, como o dirigido por Duwe e McNeeley (2018),   demonstram que mais de 80% dos participantes terminam a pena devidamente qualificados e com rápida absorção ao mercado de trabalho 8.

Para que serve a pena privativa de liberdade?

Por fim, muitos outros exemplos internacionais poderiam ser citados a fim de confirmar a importância do trabalho e da qualificação no processo de ressocialização da população encarcerada. O estado do Rio de Janeiro apresenta mais de 52 mil pessoas em cumprimento de pena, de acordo com o censo de abril deste ano do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça do RJ. Diante disso, é urgente que a sociedade fluminense reflita sobre a reintegração social da população prisional, a saber, a terceira maior do país. Qual exemplo internacional iremos seguir e reproduzir em nosso sistema prisional? Como iremos reduzir a reincidência criminal? Para que serve a pena privativa de liberdade? Para meramente excluir, isolar e punir, ou resgatar e reintegrar o detento ao seio da sociedade através do trabalho e da qualificação?  Para saber as respostas que a sociedade brasileira dará para esses questionamentos, é preciso voltar à frase de Dostoiévski mencionada no início do texto, e indagar uma outra pergunta ainda mais profunda: “Qual é o grau da nossa civilidade?” A forma como a sociedade trata a sua população prisional, excluindo ou reintegrando, é um reflexo da sua própria consciência ética e moral. 

Papel da FSC

Seguindo a Lei de Execuções Penais (7.210/84), assim como os exemplos da experiência internacional, a Fundação Santa Cabrini oferece acolhimento psicossocial, qualificação e empregabilidade à população em cumprimento de pena no estado do Rio de Janeiro, visando a construção de uma sociedade fluminense mais segura e inclusiva para todos.

1 Fredrik, Jon. How Norway turns criminals into good neighbours. [Entrevista concedida a] Emma Jane Kirby. BBC, London, 7 July 2019 (https://www.bbc.com/news/stories-48885846)

Eikeland, O. J., Manger, T., & Asbjørnsen, A. E. (2016). Norske innsette: Utdanning, arbeid, ønske og planar. [Norwegian prisoners, work, wishes and plans]. Bergen: Fylkesmannen i Hordaland

3 Davis, L. M., Bozick, R., Steele, J. L., Saunders, J., & Miles, J. N. V. (2013). Evaluating the effectiveness of correctional education: a meta-analysis of programs that provide education to incarcerated adults. Santa Monica: RAND Corporation.

4 World Prison Brief, Institute for Crime & Justice Policy Research (https://www.prisonstudies.org/map/europe)

5 Denny, Meagan (2016) “Norway’s Prison System: Investigating Recidivism and Reintegration,” Bridges: A Journal of Student Research: Vol. 10 : Iss. 10 , Article 2.

6 Davis, L. M., Bozick, R., Steele, J. L., Saunders, J., & Miles, J. N. V. (2013). Evaluating the effectiveness of correctional education: a meta-analysis of programs that provide education to incarcerated adults. Santa Monica: RAND Corporation.

7 Makarios, M., Steiner, B., & Travis, L. F. (2010). Examining the predictors of recidivism among men and women released from prison in Ohio. Criminal Justice and Behaviour, 37(12), 1377–1391

8 Duwe, G. & McNeeley, S. (2018). The Effects of Prison Labor on Institutional Misconduct, Post-Prison Employment, and Recidivism. Corrections: Policy, Practice and Research.